A Primavera de Botticelli e a Psicanálise

Magali Ferreira
5 min readOct 22, 2019

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Sempre que vejo uma obra de arte e a mesma me chama a atenção penso: O que o autor quis transmitir? Como esse conteúdo me afeta? Se algo me chama atenção significa que foi reconhecido pelo inconsciente e o consciente está tentando classificar. Os grandes mestres tem o dom de, em uma obra, expressarem sentimentos das mais variadas estruturas. Depois da aula em que analisamos a primavera de Botticelli fiz várias associações que gostaria de compartilhar com vocês.

Primavera — Botticelli

No centro do quadro temos Vênus, soberana, a deusa do amor e da beleza, parecendo nos fitar , cercada pela natureza. A deusa nos olha diretamente parecendo equilibrar a cena da saída do inverno para o início da primavera. Se encontra, no entanto, ligeiramente recuada nos indicando que o equilíbrio existe, mas não é perfeito. Reina soberana no bosque e no nosso psique, e nos faz lembrar a necessidade de equilibrar o amor carnal e o amor espiritual, pois como já disse, está no centro tudo. Talvez o amor nasça como a espuma de uma onda, mas quando essa onda se dissolve cabe a nós percebermos as modificações a serem realizadas.

As mulheres no caso parecem grávidas, indicando também o amadurecimento para a mudança da estação, ou nossas mudanças interiores.

Acima dela temos o cupido, representado de olhos vendados lançando suas flechas, e nos mostrando o quanto é indeterminado os caminhos do amor, ou das mudanças. O amor está sempre presente nas mais variadas formas mas nos causa tantos aprendizados e mudanças ao longo do nosso tempo de vida.

Existe também na obra um naturalismo muito grande. O chão é de um verde muito escuro cheio de flores e as árvores repletas de frutos alaranjados. Foram catalogados mais de 100 plantas diferentes o que mostra o quão importante são estes elementos para o autor. A abundância da natureza. Não acredito que no mundo exista algo que represente mais a renovação do que a primavera. O desapego de um ciclo e o reinício de outro. Existe coisa mais bela que as flores? O recomeço, a representação de todas as mudanças que vivemos ao longo de nossa existência e o desabrochar do novo.

Atrás da deusa temos duas entradas de luz, que poderiam representar pulmões, olhos ou quem sabe asas. Vejo esse bosque como uma representação de uma totalidade, de um espaço sagrado com uma deusa no centro, com todo o movimento e fulgor das cores, que ultrapassa o tempo e a desorganização, como o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente, no espaço que ocupamos hoje.

As entradas de luz atrás da deusa nos lembrariam nossa imortalidade, pois ao mesmo tempo que necessitamos do ar e da luz para viver, também esse mesmo ar vai nos desgastando as células, mostrando nossa imortalidade, e tudo que nos afeta a mortalidade.

Primavera — Botticelli _ Zefiro Clore e flora

Vênus divide o quadro em dois momentos, do lado direito temos Zéfiro, o deus do vento oeste, o mesmo que transportou psique a morada de Eros, e Cloris, a Mensageiro da primavera que comanda a geração dos brotos e flores. Zéfiro se apaixona pela ninfa e depois de persegui-la a fecunda e ocorre a metamorfose que vemos ao aparecer Flora — a deusa das flores. Podemos perceber a princípio em Cloris um olhar assustado, já no começo da transformação com flores saindo da boca, pois toda mudança gera medo.

Diferente de Apolo e Dafne, o amor de Zéfiro e Cloris fez surgir Flora, a personificação da primavera. As mudanças benéficas da vida em toda a sua energia pulsional, pulsão de vida. Flora representa todo nosso inconsciente totalmente sem bloqueios, sem nenhum símbolo criado pela sociedade. Com seu vestido florido onde as flores representam a alegria, a prosperidade, a vida, o renascimento e como as mandalas o círculo da vida.

Primavera _ Botticelli — As três Graças

Do lado esquerdo do quadro podemos ver as três graças, que correspondem ao encantamentos, criatividade, prosperidade familiar e da sorte. Representavam a harmonia. Em número três representam o ciclo da vida nascimento, vida, morte e todas as mudanças nelas contidas. Como acompanhantes de Vênus podem Representar o amor espiritual, a beleza a graça a harmonia no ciclo da vida. O arquétipo da troca do dar e receber. O caminho da individuação.

Primavera — Botticelli — Mercúrio

E por último no canto esquerdo temos Mercúrio, o deus do comércio da eloquência, modelo de inteligência, o responsável pela comunicação entre os deuses e o homem, o marcador de fronteiras. Um imortal que gerencia os caminhos. Ele com seu caduceu, símbolo do equilíbrio moral indica o caminho da iniciação, dissipa as nuvens que podem atrapalhar o evolução da energia contida no amor.

Acredito que esse quadro represente a pulsão de vida que existe em cada um de nós. Somos seres em constante mudança, trabalhando todos os dias o equilíbrio do dar e o receber em nossas vidas, as energias do universo. Mercúrio nos ajuda como intermediário mas no centro está sempre a nossa pulsão nos fazendo lutar para preencher nossa identidade como seres faltantes (como diria Lacan) que somos.

Talvez os psicanalistas sejam um pouco mercúrio, fazendo a comunicação do consciente e o inconsciente e nos fazendo perceber que pertencemos aquilo que criamos.

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Magali Ferreira
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Written by Magali Ferreira

Consteladora Integrativa, Mediadora, Psicanálista, estudiosa de Ervas e benzimentos, Reiki, mitologia e Tarô aplicado a psicanálise, Orgones

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